A igreja criou o carnaval, e o “pecado” virou tradição
- Aurora Oliveira
- 23 de mar.
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Dizem que o Carnaval tem raízes pagãs, que nasceu das saturnais romanas e das festas de fertilidade da Antiguidade.
Mas a verdade é outra: foi a própria Igreja Católica que deu forma e consolidou essa festa de excessos. Sim, a mesma instituição que prega a moralidade e a penitência foi a responsável por transformar antigas celebrações desordenadas no maior espetáculo da devassidão do mundo.
A história é clara. Durante séculos, a Igreja percebeu que os festejos populares eram impossíveis de erradicar. O povo queria dançar, beber, se disfarçar, rir da nobreza e até zombar dos sacerdotes. O que a Igreja fez? Em vez de lutar contra a maré, abraçou a ideia e institucionalizou o Carnaval como a “última chance” para pecar antes da Quaresma. Um golpe de mestre: permita ao povo extravasar tudo de uma vez e, depois, conduza-o à penitência e ao arrependimento. Assim, a festa passou a ser não apenas tolerada, mas incentivada.
Na Idade Média, o Carnaval já era uma celebração oficial do calendário cristão. Inicialmente associado às festas de fim de ano, ele logo se fixou nos dias que antecedem a Quarta-feira de Cinzas. Por quê? Porque nada tornaria o jejum e a abstinência da Quaresma mais “santos” do que um período prévio de puro hedonismo. O contraste entre a farra e o sacrifício era perfeito para reafirmar o controle da Igreja sobre o povo.
A própria palavra Carnaval tem origem cristã: carne vale, ou seja, “adeus à carne”, um aviso de que os dias de fartura estavam contados. Mas não nos enganemos—o espírito da festa nunca foi o de uma despedida triste, e sim uma explosão de prazeres carnais antes da privação forçada. Uma estratégia genial da Igreja para reafirmar sua autoridade: primeiro, permite o pecado; depois, oferece a redenção.
O Carnaval evoluiu, se espalhou e tomou formas diferentes pelo mundo, mas sua essência continua a mesma. A Bahia, por exemplo, criou a micareta, uma versão tardia da festa que, ironicamente, carrega um nome de origem francesa ligado à Quaresma. Na Europa, alguns países ainda comemoram a festa até a própria Quarta-feira de Cinzas, reforçando a ideia de que foi a Igreja quem ditou as regras desse jogo.
No fim das contas, o Carnaval não é um resquício pagão que sobreviveu ao cristianismo. Pelo contrário, ele é um produto direto da Igreja. Uma válvula de escape permitida e até encorajada para que, no final, todos se curvem novamente diante do altar, pedindo perdão pelos mesmos pecados que foram estrategicamente autorizados. Afinal, qual outra instituição poderia criar um mecanismo tão perfeito de controle?
Saturnais: O Festival de Devassidão Que Deu Origem ao Carnaval
Se você acha que o Carnaval de hoje é uma festa de exageros, é porque não conhece as Saturnais, a celebração romana que fazia até os mais ousados foliões modernos parecerem amadores. Durante essa festa, que acontecia todo mês de dezembro, Roma se transformava em um verdadeiro antro de caos, luxúria e inversão total de valores.
As Saturnais eram dedicadas a Saturno, o deus da colheita e da abundância, e celebravam um tempo mítico em que não existiam leis nem hierarquias. E os romanos levavam isso a sério: todos os papéis sociais eram invertidos. Senhores e escravos trocavam de lugar—não só simbolicamente, mas de fato.
Os escravos eram servidos por seus patrões, sentavam-se à mesa com eles e, por um curto período, podiam insultar, zombar e até dar ordens a seus mestres sem medo de represálias. Mas não se engane: quando a festa acabava, a realidade voltava com força total, e muitos escravos pagavam caro pelo abuso da liberdade temporária.
Mas o verdadeiro espetáculo das Saturnais não estava apenas na anarquia social, e sim na orgia desenfreada que tomava conta da cidade. Se havia um momento para se entregar a excessos sexuais, era esse. As ruas de Roma se enchiam de bêbados, cortesãs e cidadãos “respeitáveis” completamente entregues aos desejos da carne. Festins regados a vinho se transformavam em bacanais coletivos, onde ninguém se preocupava com pudores ou regras morais. Era permitido tudo—e isso significava tudo mesmo.
Outro aspecto bizarro da festa era a eleição do “Rei das Saturnais”, uma figura que encarnava o espírito caótico do festival. Esse “rei”, muitas vezes escolhido entre os plebeus ou até mesmo entre os criminosos condenados, recebia poder absoluto durante os festejos. Ele podia ordenar qualquer coisa—das mais ridículas às mais perversas—e o povo obedecia. No entanto, em algumas versões do festival, esse rei improvável terminava sua curta realeza com um destino trágico: o sacrifício ritual, como uma forma de encerrar simbolicamente o período de caos e restaurar a ordem.
E como se isso tudo não fosse insano o suficiente, os templos romanos ficavam lotados durante as Saturnais, mas não para rituais devocionais comuns. Pelo contrário, o sexo era parte essencial da adoração. Prostitutas sagradas se entregavam aos fiéis como uma forma de “abençoar” a cidade para o novo ciclo agrícola, enquanto oferendas eram feitas a Saturno em meio ao caos da festividade. O resultado? Uma Roma em completa ebulição, onde até os mais rígidos cidadãos se rendiam aos prazeres que, em outros dias do ano, fingiam condenar.
As Saturnais foram oficialmente proibidas com o avanço do cristianismo, mas seu espírito nunca desapareceu.
A Igreja tentou domesticar a festa, moldando-a ao calendário litúrgico e transformando-a no Carnaval, onde o pecado tem data marcada para começar e terminar. No entanto, o DNA das Saturnais ainda pulsa em cada baile de máscara, em cada multidão embriagada de alegria, e na própria essência do Carnaval: um momento de loucura antes da repressão. Afinal, a natureza humana pode ser contida, mas nunca completamente apagada.
